(Gênesis 1:1-6:8). A primeira porção semanal da Torá é chamada בראשית (Bereshit), que significa "no começo". Estas são as palavras de abertura da Torá: "בראשית ברא אלהים את השמים ואת הארץ" (Bereshit bara Elohim et hashamayim ve’et haaretz), que significa "No começo, Deus criou os céus e a terra". Um leitor familiarizado com o hebraico notará uma discrepância gramatical nesta frase. Na frase "ברא אלהים" (bara Elohim, "Deus criou"), a terminação "ים" (im) na palavra "אלהים" (Elohim), traduzida na Bíblia Sinodal como "Deus", indica que este substantivo está na forma plural. No entanto, o verbo "ברא" (bara, "criou") é singular. Essa incompatibilidade entre o sujeito e o verbo é um erro? Vamos explorar mais.
Na Torá, este substantivo às vezes se refere a uma divindade ou deus em geral. Em tais casos, a palavra "deus" se refere a deuses pagãos ou outras divindades e, portanto, o substantivo "אלהים" deve concordar com um verbo plural. Por exemplo, na frase "Não terás outros deuses diante de mim" ou "אחרים אלהים" (Elohim acherim), tanto o sujeito quanto o verbo estão no plural. No entanto, nesta passagem, "אלהים" é um nome próprio, derivado da raiz "אל" (El), que significa "Deus".
Então, por que há uma discrepância entre o sujeito e o verbo na primeira frase, "No princípio, Deus criou os céus e a terra" em hebraico? A forma plural de "אלהים" tem sido um tópico de reflexão para rabinos por séculos. Várias interpretações foram propostas. Alguns explicaram o uso da forma plural como indicando as múltiplas expressões do poder de Deus.
Uma inconsistência gramatical semelhante é encontrada no versículo 26 do primeiro capítulo de Gênesis. Diz: "E Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança, e domine sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus." O verbo "disse" em hebraico, "ויאמר" (vayomer), é singular, enquanto o substantivo "אלהים" ("Deus") é novamente plural. Assim, a inconsistência não aponta para deuses diferentes, mas para o nome de Deus. No entanto, o texto continua com "à nossa imagem, conforme a nossa semelhança." Como isso deve ser entendido?
Em muitos midrashim (coleções de sermões dados em sinagogas sobre textos da Torá), vários rabinos tentam explicar com quem Deus está falando. Por que "à nossa imagem"? O que significa "façamos"? Eles não fornecem uma resposta definitiva. Mas podemos tentar entender examinando outras passagens em Gênesis relacionadas ao processo de criação.
O primeiro capítulo de Gênesis descreve a criação da Terra a partir de uma "visão aérea", enquanto o segundo capítulo dá um relato mais detalhado e de perto do mesmo processo. No relato detalhado do Senhor criando o homem do pó da terra, encontramos outro nome para Deus, que na Torá é sempre escrito com as quatro letras hebraicas "יהוה" (Yud-Hey-Vav-Hey), frequentemente substituídas na tradição judaica pela leitura "Adonai" e conhecidas em latim como "Tetragrammaton". Curiosamente, o rabino Shneur Zalman, um líder judeu, discute esses dois nomes de Deus — "יהוה" (Yud-Hey-Vav-Hey) e "אלהים" (Elohim) — em seu livro *Tanya.* De acordo com sua interpretação, o primeiro nome, "יהוה", representa Deus como sendo próximo da humanidade, enquanto o segundo, "אלהים", se refere à transcendência de Deus, como sendo acima e além de tudo.
Este conceito fascinante da natureza dual de Deus reflete uma ideia semelhante no pensamento grego sobre divindades. Na mitologia grega, os deuses olímpicos eram imanentes e antropomórficos — próximos da humanidade e semelhantes aos humanos. Mais tarde, o "λόγος" (logos) platônico, como uma personificação da Razão Universal, tornou-se extremamente distante e transcendente, tão remoto que era impossível para os humanos "alcançá-lo".
Essa natureza dual da personalidade de Deus é ilustrada na primeira porção semanal, que mostra dois nomes de um Deus representando dois aspectos-chave de Seu ser: Sua transcendência (existindo acima e além de tudo) e Sua imanência (proximidade com a humanidade). Portanto, a diferença nos nomes de Deus não é acidental, mas justificada e profundamente significativa.
Essa distinção é destacada pelos verbos usados para descrever o processo da criação de Deus. No primeiro capítulo de Gênesis, o verbo usado em "no princípio, Deus criou" é "ברא" (bara). No segundo capítulo, o verbo usado para a criação do homem é "יצר" (yatzar). O primeiro verbo, "ברא", é usado apenas em relação a Deus. Existem vários outros verbos para fazer ou criar coisas, e eles podem ser aplicados tanto a Deus quanto aos humanos, mas os humanos nunca podem realizar a ação de "ברא". Muitos sábios acreditam que "ברא" se refere à capacidade de Deus de criar algo do nada.
Essa observação é crucial para entender a singularidade da natureza de Deus em relação à humanidade, já que o homem é, em certo sentido, "semelhante" a Deus nessa capacidade criativa. Mas a criação humana é limitada de maneiras que a capacidade criativa de Deus não é.
Hoje, muitos crentes estão preocupados com uma nova tendência na genética: experimentos com clonagem. Eles se perguntam: por que tentar fazer o que Deus faz? Não importa o quão longe os cientistas vão, mesmo ao ponto de clonar humanos, eles não podem fazer o que Deus faz, pois esses experimentos exigem um material inicial: o DNA de um organismo vivo. Deus, no entanto, cria sem nenhum material pré-existente. Ele criou os céus e a terra inteiramente do "nada" e, para isso, não precisou de nenhuma partícula elementar, que também criou inteiramente do "nada".
Curiosamente, a teoria alternativa, a teoria do Big Bang, afirma que de uma minúscula partícula elementar, um super-andrônico, uma quantidade enorme de energia foi liberada durante uma explosão. De fato, matemáticos, físicos e teóricos podem calcular a quantidade de massa que foi convertida em energia usando a teoria da relatividade de Einstein, mas não podem responder à questão de como essa minúscula partícula explodiu ou de onde veio. Eles alegam que veio da energia da radiação. Mas de onde veio a energia da radiação? Essas são perguntas no reino de "o que veio primeiro, a galinha ou o ovo?" E a resposta é impossível, assim como é impossível comparar as habilidades humanas e divinas. Os humanos não podem criar algo do nada, mas אלהים pode porque somente Ele tem o poder de criar, conforme expresso pelo verbo "ברא".
Por outro lado, o segundo nome de Deus — "יהוה" (Yud-Hey-Vav-Hey) — é traduzido para o russo como "Senhor", enquanto na Septuaginta, esse nome é traduzido para o grego como "κύριος", que é Kyrios ou "Senhor". Esse nome revela uma qualidade particular do caráter do Senhor. Ele não cria mais a humanidade simplesmente por Sua palavra, como fez anteriormente: "Ele falou, e tudo aconteceu; Ele ordenou, e tudo permaneceu firme". Aqui, por meio do verbo "ברא", o Senhor pega o pó da terra e, partícula por partícula, como um oleiro, forma o homem com Suas próprias mãos. Na outra forma, Ele está distante, capaz de criar tudo do nada com uma palavra, mas nesta forma, Ele é o Deus próximo, capaz de se ajoelhar e "formar", tocando Sua criação com Suas próprias mãos.
O verbo "ברא" também contém a interessante raiz "בר" (barra). Embora o primeiro capítulo de Gênesis não esteja escrito em aramaico, em aramaico, a palavra "בר" significa "filho". Se traduzíssemos isso literalmente para o russo, isso implicaria que, no início, Deus "adotou" os céus e a terra. Embora o russo não tenha um verbo que signifique "adotar como filho", a essência dessa ação é transmitida de perto no primeiro capítulo do Evangelho de João, que afirma: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava com Deus no princípio. Por meio dele todas as coisas foram feitas; sem ele nada do que foi feito se fez." Esta passagem pode ser entendida como a criação do universo por Deus por meio do Filho.
No entanto, vamos esclarecer. Na Septuaginta, "Verbo" é traduzido como "λόγος", e esse conceito, influenciado pelo pensamento grego e pela filosofia platônica, que permeia toda a cultura europeia moderna, distorce nossa compreensão contemporânea da imagem e do caráter de Deus.
Esta questão remonta à história da escrita do Evangelho. João (Yohanan ben Zavdai ou יוחנן בן זבדי), o discípulo amado de Jesus, nasceu na Galileia e provavelmente sabia grego apenas em um nível de conversação — o suficiente para vender seu peixe no mercado e explicar o preço a um comprador romano. Ele certamente não leu Platão, mas como todo judeu, ele ia à sinagoga todo sábado para ouvir a Palavra de Deus. Esta foi sua educação. Ele ouviu a Torá e a interpretação da Torá pelos rabinos. E a cada Simchat Torá (שמחת תורה ou "Alegria da Torá"), o festival que marca o início do ciclo anual de leitura da Torá, ele ouvia estas palavras: "No princípio, Deus criou os céus e a terra" e ouvia a explicação dos rabinos: tudo o que foi criado foi criado de acordo com a Lei de Deus, ou pela Lei de Deus. Como o midrash "Bereshit Rabbah" (בראשית רבה) escreve: "No princípio era a Torá, e com ela, Deus criou tudo neste mundo." Isso não soa semelhante ao que é declarado no Evangelho de João?
Foi isso que João quis dizer quando traduziu a palavra hebraica "תורה" (Torá) para o grego depois de aprender a língua durante o Pentecostes, após a ressurreição de Jesus. Ele poderia ter traduzido com outra palavra grega, "νομός" (nomos), que significa "lei". No entanto, ele não o fez, porque aos olhos dos judeus, incluindo os judeus helenizados, essa palavra teria sido entendida como os 613 mandamentos a serem seguidos. Ao distinguir esses conceitos, João visava mostrar uma Lei superior — o próprio princípio que Deus usou na criação de tudo, que reflete Seu caráter santo. Essas palavras foram dirigidas aos judeus que, apenas uma década antes, testemunharam a destruição do Templo (70 d.C.) e sabiam que a maioria dos mandamentos relacionados ao Templo não poderiam mais ser cumpridos.
Na frase "Por meio dele todas as coisas foram feitas", João estava transmitindo isso: no princípio, havia a Torá, e a Torá estava com Deus, e a Torá era Deus, e tudo foi feito por meio dela, e sem ela, nada do que foi feito foi feito, e a Torá se tornou carne.
Nessas palavras de conforto que João estava oferecendo ao seu povo, o conceito de "λόγος" (logos) mais tarde criou raízes, introduzindo confusão entre ideias bíblicas e filosóficas.